Um dos mais inventivos artistas de sua época, o alagoano Hermeto Pascoal apresentou-se com a Orquestra Jovem Tom Jobim no dia 29 de agosto no Memorial da América Latina. Antes de tocar com a orquestra músicas de sua autoria como Coalhada, Jegue e Bebê, Hermeto concedeu essa entrevista à equipe de comunicação da Tom Jobim – EMESP, na qual conta histórias de seus 73 anos de vida, fala sobre sua carreira e de sua paixão pela música.
– São quantos anos de carreira?
São 73. Eu considero que a minha carreira começou no dia 22 de junho de 1936. Na mesma hora em que eu nasci, já comecei a minha carreira.
– Mesmo com tantos anos de estrada sua vitalidade musical parece intacta. Existe alguma fórmula mágica para toda essa vontade de viver e fazer música?
A fórmula é você fazer o que gosta. Eu amo o que faço, e para isso sempre existe motivação. É a música que me carrega e que vai me levar de volta para o céu, se Deus quiser. Tenho cumprido muito bem a minha missão aqui na Terra, que é a música. Então, tenho que ir para o céu mesmo!
– Você utiliza instrumentos não usuais para fazer música, como brinquedos infantis, garrafas e até mesmo a água. Para você, tudo é música?
Tudo. Até os 14 anos o meu público e os meus professores foram os animais: os pássaros, os cavalos, as vacas, os sapos. Eu tocava com eles e para eles e tinha uma receptividade maravilhosa. Isso é algo que existe na minha música, essa essência eu não perdi, ela continua comigo em cada coisa que eu faço. Na música sinfônica, no grupo, em qualquer formação.
– Para você, qual é a diferença entre música erudita e popular?
A diferença é muito grande, porque a proposta do erudito é muito padronizada. Gosto desse estilo musical, da teoria, mas nada tem mudado. Os mesmos compositores são tocados de geração para geração, sem haver inovação nas músicas. Se o Villa-Lobos pudesse falar agora, ele diria: “Gente, toquem o Trenzinho Caipira com outro arranjo. Já que eu não estou aí e não posso fazer, façam vocês”. É como aquela pessoa que usa a mesma roupa a vida toda; como aquele edifício lindo, maravilhoso e bem construído, porém sem restauração. É preciso de restauração na música, mas existem os preconceitos, aquelas pessoas antigas que não querem mexer.
Os próprios compositores não podem falar nada porque não estão mais conosco, mas mesmo mentalmente eles mandam o recado. Eles estão dizendo para todo mundo, eu escuto muito todos eles dizerem. Lembro-me o que o Tom Jobim me disse dentro do elevador em Nova York em 1971, inclusive estou falando abertamente pela primeira vez. Ele morava em Nova York e estava chateado porque a Bossa Nova tinha se tornado música de elevador. Ele estava sentindo a Bossa Nova velha e me disse: “Hermeto, eu gostaria de fazer uma coisa assim, parecida com o Quarteto Novo”. Para você ver como é, o Tom antes de Deus levá-lo já estava assim, imagine como se sentiriam Villa-Lobos, Bethoven, Mozart. Já pensou? O Mozart estaria entortando tudo por aí, fazendo um monte de acordes maravilhosos, aliás, todos eles estariam fazendo isso. Eles dão inclusive a intuição para as pessoas, mas quando esbarram nos conservadores aí… “Não vai mexer na obra, não pode mexer na obra”. Isso tem que acabar. Eu venho tentando há muitos anos, componho peças sinfônicas. As vezes eu faço um trabalho com a sinfônica, toco no Municipal, mas se o Hermeto não está mais lá, ninguém usa mais a música, fica o papel amarelando. Eu gostaria que na minha ausência eles tocassem, e aqui, com a Orquestra Jovem Tom Jobim, senti que vão continuar tocando a minha música. Porque eu acho que não é só quando a gente morre que devem fazer homenagens, o que é muito lindo também, mas que façam o que puderem com a gente ainda aqui na Terra, é muito importante e é muito melhor. Que façam depois também, claro, mas vamos fazer juntos as coisas.
– Então, você acha que falta liberdade para os músicos?
Falta liberdade, coragem, criatividade. Isso tem que partir também das escolas, dos professores. Sei que eles não têm culpa porque também não tiveram essa formação, mas os músicos têm que exigir, no bom sentido. O aluno tem que falar com o professor, não pode ter medo. Os estudantes devem se reunir para dizer ao professor: “Vamos mudar esses arranjos, vamos fazer alguma coisa nova”. Se o professor não sabe, que convide alguém para fazer. Sou um dos que estão aí para fazer. Podemos pegar peças de qualquer compositor. Se me der o tema, posso transformar tranquilamente. Como no Songbook do Tom Jobim. Ele já tinha falecido e me lembro de ter feito uma roupagem nova para o Desafinado. Quando terminei, senti o Tom rindo, feliz. Ele era um cara super musical e senti ele rindo espiritualmente, rindo daquilo, aí eu digo “Aí Tom, agora sim isso aqui é desafinado! Um monte de acordes bonitos, mas agora está desafinado mesmo!”
A minha religião é a música. Já pensou a energia que ela tem, principalmente na hora que você está compondo? Esses compositores que estão no outro plano, estão mais vivos do que nunca. Acho que sou um dos porta-vozes deles, pedindo quase como quem pede socorro, que as pessoas peguem essas músicas e façam outros arranjos, modifiquem. Tocar o Galho da Roseira como eu gravei, igualzinho, só porque acham que eu quero assim. Pois eu não quero! Ninguém quer! Todo mundo quer que as pessoas dêem uma vestimenta nova. Essa é a minha maneira de pensar e sentir.
– Você é tão a favor da liberdade que em seu site existe uma carta autorizando qualquer pessoa a fazer uso de suas músicas e partituras…
Exatamente. Todas as músicas que eu gravei. Foi uma luta com as gravadoras, que ficaram chateadas, mas nunca me pagaram. Você acha que eu vou deixar as músicas paradas com a turma a fim de tocar? Então é melhor não ter dinheiro, mas que toquem a música. Não receber e não tocar é pior. Ficou bonito isso aí e no futuro vão ter músicas inéditas de graça também para a turma.
– Você pretende fazer isso sempre?
Sim, já estamos bolando uma maneira para fazer com que cheguem com uma maior facilidade a essas pessoas. Você vê essa orquestra aqui, os músicos são de alto nível. No meu tempo não tinha jovens tocando tão bem assim. Quando aparecia um assim era um bate-boca danado, porque era novidade naquela época.
– Como é ser um cidadão do mundo e ter reconhecimento internacional do seu trabalho?
É importante ter esse reconhecimento de músico também, porque para mim foi uma luta muito grande. Eu vim aprender teoria com 42 para 43 anos de idade. Sou autodidata e fui aprendendo com as minhas deduções, com meus pensamentos, com as minhas intuições. Aprendi assim, tocando com um, tocando com outro, escutando as pessoas conversando nos corredores. Eu com ouvido de mercador ficava ouvindo o cara falar e tocar; eu já escutava e queria saber a tessitura do instrumento. Então, até hoje eu sou um curioso e me considero um músico intuitivo, tenho até hoje muita facilidade para descobrir e para sentir as coisas bem rápido.
– Você acha que os músicos têm que ter um lado bem mais intuitivo do que técnico?
Sim, porque nas escolas eles não ensinam isso, até porque isso não se ensina. Mas eles não dão liberdade, os músicos não têm liberdade. O que tem que acabar é com a padronização do ensino. O professor tem a obrigação de conhecer cada músico e as suas possibilidades. Porque não adianta dar uma palestra para um monte de músicos ou querer ensinar ou passar alguma coisa sem saber quem é que vai alcançar aquilo que eu vou dizer ou não? Os estudantes devem ter sempre liberdade para fazer perguntas ao professor, não só ele ficar falando o tempo todo. Se eu fosse professor, diria que qualquer um poderia fazer perguntas com toda a liberdade. E o que falta é justamente o diálogo, o professor se sentir também um aluno que aprende com os estudantes. Quebrar a barreira, você sabe que é muito difícil, mas nada é impossível. Para o bem da música isso é muito bom. Como falei antes, os professores também não tiveram isso, mas eles deveriam fazer uma reciclagem.
– Quando você começou a tocar com o seu irmão, em Alagoas, você já imaginava que seu trabalho tomaria proporções tão grandes?
Ah não… não imaginava, mas tinha esperança, tinha vontade. Não sabia onde iria chegar, mas as coisas foram acontecendo. Foi com muita perseverança, com muita luta. Aquele prazer que, quanto mais eu passava por um problema, mais aquele problema me dava vontade de fazer coisas novas. Eu achava que era sempre puxando para baixo, que tem um imã que Deus colocou na Terra, ele não colocou por mal, mas é ele que puxa para baixo tudo o que você faz. Até uma caneta, quando você está escrevendo uma coisa linda e acaba a tinta na hora que não tem que acabar, isso tudo é uma coisa que puxa para baixo.
Eu me lembro que tinha que viajar de ônibus mais de uma hora para a boate onde eu tocava, e tinha que ir cantando no ônibus porque não sabia escrever nada e estava decorando aquilo. Eu dizia para o cobrador: “Não se incomode não que eu não sou louco, eu estou cantando porque eu não escrevo música e não posso esquecer”. Eu pagava o dobro da passagem para ele por causa disso. Ele ficou me conhecendo e quando eu entrava no ônibus, ele já dizia: “Lá vem o cantor”. Então, não é a toa que você consegue as coisas, a gente consegue com muito trabalho. Trabalho que eu chamo de devoção, não é nada de obrigação, é devoção.
– Quais são as lembranças que você guarda da sua infância?
Lembranças que eu guardo são aquelas que vêm sem eu esperar. Eu não guardo as lembranças, porque elas existem com tanta força que já fazem parte de mim. Se eu fosse guardar as lembranças, seria como se eu quisesse olhar para as minhas costas, olhar para a minha sombra. Eu sei que ela existe, inclusive me protege até de me queimar. Para que venham naturais as lembranças, eu escrevo. Por exemplo, antes de vir pra cá eu estava escrevendo em um caderno um monte de músicas e, de repente, me lembrei de quando fui para Recife com 14 anos. Às vezes me lembro com a música já pronta que não tem nem nome. A maioria das minhas músicas eu não coloco nome, e ao olhar para a música vejo aquele lugar, e isso geralmente acontece quando estou compondo. Quer dizer, a lembrança é boa quando vem assim, quando você não fica com medo de esquecer dela, porque quem tem medo de esquecer, não sabe, mas já esqueceu. Pra mim ela vem assim com a maior naturalidade.
– Você conhece há muito tempo o regente da Orquestra Jovem Tom Jobim, Roberto Sion?
Eu conheço o Sion desde os 20 anos de idade. Eu fui tocar em Santos e ele estava lá para assistir ao show, muito jovem. Nessa época ele era muito tímido e não foi falar comigo. Conheci o Sion justamente quando ele se mudou para São Paulo e na época eu estava precisando de um saxofonista no grupo. Convidei ele para tocar comigo. A ideia dele era tocar com orquestra, com big band, era o pensamento mais forte dele na época. Disse pra ele ficar um tempo no grupo até aparecer outro. Ele topou e foi ficando. No grupo é assim, as pessoas ficam e saem quando elas querem, é como se fosse uma igreja, um templo aberto que as pessoas vão e saem quando querem. Entram por aqui, saem por ali, ou voltam pelo mesmo lugar e continua sempre uma família. O Sion está fazendo um trabalho muito bonito aqui, está de parabéns com essa turma que está tocando bem, e ele é uma pessoa de muito bom gosto, harmônico, um instrumentista da pesada.
Isso é muito bom para a música, para dar aquele feeling que na música erudita não tem, que é justamente a coisa rítmica, a coisa da harmonia, dos acordes. É uma inovação, e aí é que eu digo, tomara que ele, Nelson Ayres e outros persistam nisso e que façam arranjos, e dêem vestimentas novas para as peças de compositores antigos. Não é mudar a música, porque a música não se muda. A música é justamente a melodia, o tema. O tema é o filho e a mãe da música é a harmonia. Você não pode mexer no tema, mas pode colocar um acorde, outro, fazer a harmonia, pode mudar o andamento, o ritmo; pode introduzir compasso composto, pode fazer o que quiser sem mexer na melodia, tornando a música linda, criativa e nova. Para as pessoas que escutam aquilo sempre do mesmo jeito, coitados, é cansativo.
Eles pensam que o público é burro, mas o público não é burro não. O público evolui junto e está sempre esperando coisas novas. Qualquer coisa nova que se faz, você sente a reação do público, aquela força. O que eu acho que está faltando é isso, é uma crítica que eu faço, mas bem construtiva.
– Qual mensagem você quer deixar para os jovens músicos brasileiros?
O que os jovens precisam é conversar com seus professores, não podem ficar na mesmice sempre, não podem estabelecer padrões. Cada aluno tem que saber que uma alma é semelhante a outra, porém não igual. As coisas têm que ser somadas e eles devem dar carinho ao professor, mas na hora de pegar no pé, com respeito, tem que pegar. Dizer o que sente e sempre ter uma pergunta para o professor, para questionar construtivamente. Porque às vezes eles deixam a música pagar o pato.
Outra coisa importante é lembrar sempre que pra tocar Bossa Nova tem que se tocar diferente. A turma da Bossa Nova hoje poderia ser chamada de Bossa Velha, como eu falei do que o Tom me disse em 1971, quando estava cansando. Você imagina agora. A Bossa Nova é uma música linda, deve continuar assim, mas para esclarecer: não é mais algo novo, é uma música que já está assentada. Como eu falei, são vários edifícios velhos e antigos, porém sem restauração, e a Bossa Nova precisa de restauração. Com muito carinho, porque as melodias são muito lindas, muito bonitas e maravilhosas. O que elas precisam é justamente disso, que peguem o Songbook e escutem lá aquele maluco barbudo, o Hermeto, fez com Desafinado e com outras músicas como Chovendo na Roseira. Claro que não é para fazer igual, mas para usar de inspiração. Mas não, os velhos da Bossa Nova vão falar: “Assim não, isso não é Bossa Nova”. Porque a maioria deles é de tradicionalistas, e nós temos que acabar com isso. Nem lata, nem enlatado dá pé, você imagine querer conservar a música. A música que você tem que vesti-la toda hora, com algo novo e tocar diferente. Às vezes você toca o mesmo acorde, mas se faz uma divisão diferente com o mesmo acorde, irá soar como duas coisas diferentes, duas coisas maravilhosas.
A mensagem que eu mando é que eles continuem. Parabéns pelo nível dessa orquestra e para as outras de jovens que eu sei que tem aqui em São Paulo. Parabéns para todos e que os professores não deixem de convidar outras pessoas, não só o Hermeto, para vir fazer workshop, ou se apresentar com a orquestra. A gente está sempre às ordens para qualquer coisa, porque para mim música não é trabalho, é devoção.
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